A ausência de vínculo formal e a precarização das condições de trabalho colocam em risco os direitos trabalhistas dos motoristas de aplicativos, que continuam à margem das proteções garantidas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Com o crescimento acelerado das plataformas digitais, milhões de brasileiros passaram a exercer suas atividades como motoristas e entregadores por meio de aplicativos. No entanto, essa nova forma de trabalho trouxe à tona sérias lacunas jurídicas e sociais.
Este artigo analisa de forma detalhada os avanços propostos pelo novo Projeto de Lei Complementar, os riscos e desafios que ainda persistem, e o impacto direto que essas mudanças podem trazer para os trabalhadores que atuam nessas plataformas.
Se você é motorista, entregador ou atua na área jurídica com foco no Direito do Trabalho, continue a leitura e compreenda como essa regulamentação pode mudar definitivamente o cenário do trabalho por aplicativo no Brasil.
O cenário atual dos trabalhadores de aplicativos
A ascensão do trabalho mediado por plataformas digitais nos últimos anos transformou profundamente a dinâmica das relações laborais no Brasil.
Motoristas e entregadores que atuam por meio de aplicativos tornaram-se peças essenciais na logística urbana, especialmente em grandes centros metropolitanos. Apesar da importância econômica e social dessa atividade, os direitos trabalhistas dos motoristas de aplicativos continuam sendo ignorados ou minimamente garantidos.
A promessa de autonomia e flexibilidade, frequentemente utilizada como argumento pelas empresas de tecnologia, contrasta com a dura realidade enfrentada por esses trabalhadores: jornadas prolongadas, remuneração instável, ausência de garantias mínimas e falta de proteção previdenciária. A vulnerabilidade cresce, ao mesmo tempo em que o modelo de negócios das plataformas se fortalece.
Nos tópicos a seguir, exploramos dois aspectos centrais da realidade atual desses trabalhadores: as condições concretas de trabalho e a ausência de proteção social adequada, ambos agravados pela ausência de uma regulamentação específica até os movimentos mais recentes no Congresso Nacional.
A realidade profissional
Embora as plataformas digitais vendam a ideia de liberdade e flexibilidade, a realidade prática enfrentada pelos motoristas e entregadores é bastante distinta.
Estudos recentes e reportagens de órgãos como a Agência Brasil e entidades sindicais demonstram que esses profissionais têm enfrentado jornadas cada vez mais longas para conseguir atingir uma renda minimamente suficiente.
Com a crescente concorrência nas plataformas e a falta de mecanismos de controle de remuneração, o valor recebido por hora efetivamente trabalhada vem diminuindo. Muitos trabalhadores relatam jornadas superiores a 12 horas diárias, com descanso irregular, o que compromete não apenas a saúde física e mental, mas também a segurança no trânsito.
Esses trabalhadores não possuem vínculo formal de emprego, o que os exclui do acesso a direitos básicos como férias remuneradas, 13º salário, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), adicional noturno e horas extras.
Tal precariedade reforça a assimetria nas relações entre trabalhadores e plataformas, consolidando um modelo que favorece exclusivamente o lado empresarial, em detrimento da dignidade laboral.
A falta de proteção social
Outro ponto crítico que caracteriza nossa atualidade é a ausência de cobertura previdenciária adequada. A legislação atual permite que esses profissionais se registrem como Microempreendedores Individuais (MEI), assumindo por conta própria a responsabilidade pelo recolhimento de tributos e contribuições sociais. No entanto, essa formalização é opcional e, muitas vezes, não ocorre devido à falta de conhecimento, baixa renda ou insegurança jurídica.
Grande parte desses trabalhadores atua sem qualquer filiação ao Regime Geral da Previdência Social (RGPS), pois o registro como Microempreendedor Individual (MEI) é opcional e pouco difundido. Como consequência, a categoria fica desprotegida em situações de acidente, invalidez, maternidade ou aposentadoria.
A Agência Gov e outras fontes oficiais reforçam que, na ausência de uma regulamentação que obrigue a contribuição por parte das plataformas, a esmagadora maioria desses trabalhadores permanece desamparada.
A carência de proteção social amplia a vulnerabilidade dessa categoria. Em casos de acidentes durante a atividade, não há respaldo institucional ou suporte financeiro.
Situações de afastamento por doença, gravidez ou velhice se tornam cenários de completa insegurança econômica, agravando ainda mais a condição de precariedade.
A proposta de regulamentação: Avanços e desafios
Após anos de impasses jurídicos e insegurança quanto à natureza das relações de trabalho mediadas por plataformas digitais, o governo federal apresentou o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 12/2024 como tentativa de estabelecer um marco legal para disciplinar a atuação de motoristas e entregadores de aplicativos no Brasil.
Essa iniciativa surge em meio a um intenso debate entre entidades representativas dos trabalhadores, empresas de tecnologia, juristas e a sociedade civil.
A proposta de regulamentação busca equilibrar dois interesses fundamentais: por um lado, a garantia dos direitos trabalhistas dos motoristas de aplicativos e, por outro, a manutenção de um modelo flexível que permita certa autonomia profissional.
Embora o projeto represente um avanço inegável em relação ao vácuo normativo atual, ele também suscita dúvidas e críticas sobre sua efetividade, amplitude e alcance.
Nos tópicos seguintes, analisamos os principais pontos do texto legal, os avanços estruturais que ele representa e as tensões que ainda persistem, especialmente em relação à autonomia contratual e à proteção social dos trabalhadores.
Principais mudanças introduzidas
A proposta legislativa apresenta uma série de medidas estruturadas para fornecer um mínimo de segurança jurídica aos trabalhadores de aplicativos.
Classificação profissional
O PLP nº 12/2024 propõe a criação da figura do “trabalhador autônomo por plataforma”, com um enquadramento jurídico próprio. Trata-se de uma tentativa de reconhecimento formal da atividade, diferenciando-a tanto da informalidade quanto do emprego tradicional regido pela CLT. Esse novo tipo legal busca respeitar as especificidades do trabalho por demanda digital, mas ao mesmo tempo garantir direitos mínimos.
O reconhecimento formal permite que esses profissionais sejam incluídos em políticas públicas, tenham acesso facilitado a negociações coletivas e possam ser representados por entidades sindicais próprias — o que até então era juridicamente indefinido.
Remuneração mínima
Outro ponto relevante do projeto é o estabelecimento de um valor mínimo por hora efetivamente trabalhada, que será indexado ao salário mínimo nacional.
Esse mecanismo visa coibir a exploração por meio de remunerações abaixo do aceitável e garantir um piso financeiro mínimo, algo frequentemente demandado por motoristas e entregadores, especialmente aqueles que trabalham em tempo integral. O PLP estabelece um piso por hora efetivamente trabalhada, vinculado ao salário mínimo nacional. A medida visa combater a exploração e garantir um rendimento mínimo aos trabalhadores, conforme os princípios do art. 7º, inciso IV, da CF/88, que assegura salário digno e compatível com a função exercida.
Essa medida é considerada um avanço importante no combate à precarização, pois impõe um limite à política de remuneração variável imposta unilateralmente pelas plataformas, sem transparência ou diálogo com os trabalhadores.
Contribuição previdenciária
O texto também determina a obrigatoriedade de inscrição dos trabalhadores no Regime Geral de Previdência Social (RGPS). A contribuição será compartilhada: o trabalhador arcará com uma parte e a plataforma será responsável por um percentual superior, como forma de corresponsabilidade.
Essa medida representa um passo importante na inclusão previdenciária, possibilitando o acesso a benefícios como aposentadoria, auxílio-doença, pensão por morte e salário-maternidade.
Além disso, reforça a ideia de que as plataformas não podem se eximir de contribuir com a proteção social daqueles que sustentam seus modelos de negócio.
Benefícios sociais
Com a regularização da atividade, os trabalhadores terão garantido o acesso a benefícios sociais fundamentais, como licença maternidade/paternidade, auxílio-doença e, futuramente, aposentadoria.
Essa estrutura busca corrigir a ausência histórica de amparo estatal a esses profissionais, especialmente em momentos de vulnerabilidade, como acidentes, gravidez ou envelhecimento.
A Questão da autonomia
A manutenção da autonomia do trabalhador é uma das principais bandeiras das plataformas digitais e, por isso, foi incorporada ao texto da proposta como uma das premissas centrais.
De acordo com o PLP nº 12/2024, o trabalhador continuará tendo liberdade para decidir:
- Quando e quantas horas irá trabalhar;
- Quais plataformas deseja utilizar simultaneamente ou alternadamente;
- Quais corridas ou entregas deseja aceitar ou recusar.
Essa estrutura pretende preservar o caráter flexível da atividade, considerado um dos principais atrativos para muitos profissionais do setor. No entanto, especialistas alertam que essa “autonomia” pode ser ilusória se não for acompanhada de mecanismos de proteção social e transparência na relação com as plataformas.
Muitos trabalhadores relatam sofrer sanções informais — como redução na oferta de corridas ou bloqueios na conta — quando recusam chamadas, questionam valores ou se afastam temporariamente. Nesse contexto, a chamada autonomia pode mascarar um vínculo de subordinação disfarçada.
O desafio da proposta é encontrar um ponto de equilíbrio entre liberdade contratual e responsabilidade empresarial, garantindo que os direitos trabalhistas dos motoristas de aplicativos não sejam comprometidos em nome de uma flexibilidade que, na prática, pode não existir plenamente.
Implicações para os trabalhadores
A regulamentação do trabalho por plataformas digitais representa um divisor de águas para os profissionais que atuam como motoristas e entregadores de aplicativos.
Pela primeira vez, o ordenamento jurídico brasileiro avança de forma concreta no sentido de reconhecer e organizar essa modalidade de trabalho, até então situada em uma zona cinzenta entre a informalidade e a autonomia contratual.
Para os trabalhadores, especialmente os que atuam de forma contínua e dependem financeiramente dessa atividade, os efeitos da nova legislação serão diretos e significativos.
No entanto, é importante destacar que, ao mesmo tempo em que se abrem oportunidades para a inclusão de direitos, também surgem desafios no tocante à implementação prática dessas normas. Os impactos positivos não serão automáticos nem uniformes. Serão necessários mecanismos de fiscalização, instrumentos de controle social e a participação ativa dos próprios trabalhadores na construção de um novo modelo de relação com as plataformas.
Benefícios esperados
A nova regulamentação representa um importante passo no reconhecimento da atividade exercida por milhões de trabalhadores de aplicativos em todo o país.
Segurança jurídica
A inclusão formal do trabalhador de aplicativo em um regime jurídico específico tende a reduzir litígios, ambiguidade contratual e insegurança quanto aos direitos e deveres das partes.
Para o trabalhador, isso representa maior previsibilidade e proteção em suas relações com as plataformas, permitindo que ele recorra ao Judiciário com base em um marco legal claro e atualizado.
Acesso a benefícios
Com a exigência de inscrição no Regime Geral de Previdência Social (RGPS), os trabalhadores passam a ter direito a benefícios fundamentais como aposentadoria, auxílio-doença, salário-maternidade e pensão por morte.
Essa inclusão é uma conquista histórica para uma categoria que, até então, vivia desprotegida e exposta a riscos sociais severos em situações de vulnerabilidade pessoal ou familiar.
A remuneração mínima garantida e o acesso a outros direitos sociais ampliam o patamar de dignidade no trabalho, afastando o risco de uma remuneração degradante.
Valorização profissional
O reconhecimento jurídico e a institucionalização da atividade conferem maior legitimidade social ao trabalho desempenhado por motoristas e entregadores.
A formalização contribui para que esses profissionais deixem de ser vistos como “bicos” ou trabalhos transitórios e passem a ocupar um lugar legítimo no mercado de trabalho, com identidade profissional própria e acesso a políticas públicas específicas.
Desafios persistentes
Apesar das melhorias propostas pela legislação, o caminho para sua efetivação plena está longe de ser simples. A aplicação das novas regras dependerá de um esforço conjunto entre governo, empresas e trabalhadores.
Fiscalização e cumprimento
A experiência brasileira com a legislação trabalhista demonstra que a existência de normas não garante, por si só, sua efetividade. Será necessário criar mecanismos de fiscalização robustos para garantir que as plataformas cumpram suas obrigações previdenciárias, remuneratórias e contratuais.
O risco de descumprimento, especialmente por empresas de menor porte ou operando de forma informal, é significativo.
Adaptação das plataformas
O modelo de negócios das empresas de aplicativo foi estruturado, durante anos, com base na lógica da não intervenção estatal e da desregulamentação.
A adaptação a uma nova realidade jurídica — com custos, responsabilidades e limites operacionais — exigirá mudanças profundas em suas estruturas operacionais e estratégias comerciais. Essa transição poderá gerar resistência, tentativa de judicialização ou mesmo aumento da informalidade.
Educação e conscientização
Outro desafio central será a informação e capacitação dos próprios trabalhadores. Muitos profissionais desconhecem seus direitos ou não compreendem o funcionamento dos regimes previdenciários e tributários.
Será fundamental desenvolver políticas de orientação, campanhas educativas e apoio jurídico acessível para que os trabalhadores compreendam as mudanças e possam se beneficiar delas de forma plena.
O Papel das entidades sindicais
O fortalecimento da representação coletiva é um dos pilares da proposta de regulamentação. A criação e legitimação de entidades sindicais específicas para os trabalhadores de aplicativos visa preencher uma lacuna histórica no campo da negociação e da defesa de interesses coletivos dessa categoria.
Diferentemente dos trabalhadores formais regidos pela CLT, os profissionais de plataforma sempre atuaram de forma dispersa, sem estrutura de apoio institucional, o que os tornou mais vulneráveis à precarização. A nova legislação propõe mudar esse cenário por meio do reconhecimento legal da representação sindical.
Representação coletiva
A proposta estabelece que os trabalhadores de aplicativos poderão se organizar por meio de sindicatos próprios, com competências similares às de entidades tradicionais do movimento sindical.
Essas organizações terão legitimidade para:
- Negociar coletivamente com as plataformas, estabelecendo acordos sobre remuneração, condições de trabalho e regras de operação;
- Atuar judicial e extrajudicialmente na defesa dos interesses da categoria, inclusive com a possibilidade de ajuizar ações coletivas;
- Representar os trabalhadores perante órgãos públicos e em instâncias de negociação tripartite (governo, empresas e trabalhadores).
A presença sindical também poderá viabilizar a construção de convenções coletivas específicas para cada modalidade de serviço (transporte, entrega etc.), adequando às normas às particularidades de cada segmento e promovendo maior equilíbrio na relação entre capital e trabalho.
Para que essa estrutura sindical seja eficaz, será necessário garantir a autonomia, a legitimidade e a independência dessas entidades, além de incentivar a participação ativa dos trabalhadores em sua gestão e nas instâncias de deliberação coletiva.
Conclusão: Caminhos para o futuro
A regulamentação do trabalho por aplicativos representa um passo significativo para a proteção dos direitos dos trabalhadores dessa categoria. A regulamentação do trabalho por aplicativos é um passo necessário e urgente diante da crescente informalidade e da ausência de proteção jurídica. O PLP n.º 12/2024 representa um avanço ao reconhecer os trabalhadores de plataforma como uma categoria própria, com direitos específicos.
O trabalhador que preste o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículo automotor de quatro rodas, com intermediação de empresa operadora de aplicativo, será considerado, para fins trabalhistas, trabalhador autônomo por plataforma e será regido por esta Lei Complementar sempre que prestar o serviço, desde que com plena liberdade para decidir sobre dias, horários e períodos em que se conectará ao aplicativo.
Embora avanços tenham sido alcançados, é essencial que haja um esforço contínuo para superar os desafios remanescentes.
A colaboração entre trabalhadores, empresas e governo será crucial para construir um ambiente de trabalho justo, seguro e sustentável para todos os envolvidos.